Créditos da imagem: estadiosrs.futblog.com.br
Onde nasci, algumas pessoas falavam “encarnado” para definir a cor vermelha e confesso que gostava da palavra, me soava algo forte, profundo, visceral, em carne viva.
Assim, foi a cor da camiseta de forma emblemática e aleatória o motivo principal para eu torcer (na infância) pelo 14 de Julho de Passo Fundo, arquirrival do Gaúcho, que usava um uniforme – para mim – verde e sem graça.
E da minha casa, que ficava em uma parte elevada do terreno coroado por grandes ciprestes e araucárias plantadas por minha mãe (inexplicavelmente derrubadas com a complacência da prefeitura local) eu subia no alto de um cipreste antigo e via as arquibancadas e o estádio do 14 de Julho, onde hoje está localizada a rodoviária da cidade e ao lado do rio que nomeia a cidade. Hoje um córrego poluído, onde ensaiamos alguns banhos, temendo a forte correnteza. Adorava aquela movimentação de gente nos domingos ensolarados.
Mas futebol no interior não é para os fracos. As dificuldades são muitas e a sobrevivência dos clubes, uma loteria.
Às vezes passa, pasmem, pela fusão de antigos rivais. Segundo o historiador Marco Antônio Damian, o 14 de Julho de Passo Fundo nasceu a partir da fusão com o extinto Grêmio Esportivo em julho de 1922, quando passou a se denominar Grêmio Esportivo 14 de Julho, substituindo as camisas brancas por uma nova camisa, vermelha e branca.
Quase 60 anos depois, a história se repete e, em 10 de janeiro de 1986, foi fundado o Esporte Clube Passo Fundo, resultante da fusão dos dois clubes da cidade de Passo Fundo: o 14 de Julho e o Gaúcho.
Confesso que me incomodou esta fusão, pois como imaginar dois rivais unidos num só time? Isso em uma cidade que a rivalidade era imensa e não só no futebol.
Imagine Grêmio e Internacional transformados em um só clube, ou Palmeiras e São Paulo, Flamengo e Fluminense ou, ainda, Ponte Preta e Guarani? Acho meio esquisito, parece que existe nessa junção uma espécie de traição às nossas crenças, assim como a separação dos pais. Sei lá, uma espécie de quebra do imaginário infantil. Como ter que fazer as pazes depois de brigar feio com alguém.
O futebol como pacificador é tema de pesquisa do médico psiquiatra, escritor e cineasta passo-fundense Jorge Alberto Salton, filho do patrono do S.C. Gaúcho, Wolmar Salton, nome do principal estádio da região. Ele buscou na história fatos para discutir o futebol, os homens e as suas rivalidades.
“O que fez Passo Fundo depois de ser dividida ao meio pela maior guerra civil do Brasil? A metade era Federalista, os maragatos, liderados por Prestes Guimarães. A outra metade, Republicana, os chimangos, liderados por Gervásio Annes (bisavô de Jorge Salton). A metade com as cores verde e branca dos Republicanos, a outra metade com as cores vermelhas dos Federalistas, com o famoso lenço vermelho. O que fazer com o ódio acumulado? Com o desejo de vingança? A cidade era pequena, pisava-se os mesmos lugares, o mesmo cemitério. Gervásio Annes e Prestes Guimarães, estão enterrados a dez passos um do outro no Cemitério da Vera Cruz”, alega.
Os fatos por ele coletados foram revelando a forma discreta como nossos (e me incluo nessa) antepassados lidaram no pós-conflito e o papel que o futebol desempenhou. Não se falava na revolução de 93. Porém, de forma indireta e sutil, procuravam civilizar as disputas dela herdadas, diz o pesquisador.
Jorge lembra que um grupo de pessoas funda o S.C. Gaúcho, curiosamente com as cores verde e branca dos Republicanos e, em 1922, um grupo de pessoas funda o 14 de Julho, curiosamente com a cor vermelha dos Federalistas: “e a cidade passou quase cem anos sem falar na guerra civil. Nossos bisavós, avós e pais não falavam no assunto. Nas escolas não se falava em Republicanos e em Federalistas. Mas se falava o tempo todo no Gaúcho e no 14 de Julho. Durante todo esse tempo em que a cidade não falou no lenço vermelho e no lenço verde e branco, ela falou, falou e falou no Gaúcho e no 14 de Julho. Na bandeira vermelha do 14, na bandeira verde do Gaúcho”.
Ele prossegue: “as disputas eram acirradíssimas. A cidade se dividiu entre esses dois clubes, todos participavam dos intermináveis debates e enchiam os estádios. Os homens da guerra civil saíram de cena e deram lugar aos homens do futebol. O homem do futebol é a continuação atenuada do homem da revolução das degolas. Gaúcho e 14, verdes e vermelhos, continuaram a ser depositários de nossos demônios. Sartre dizia: ´os demônios são os outros´. Enquanto existiram as disputas acirradíssimas entre nossos dois clubes, nossa cidade vivia uma rivalidade mais intensa do que a de Grêmio e Inter”.
Quando o 14 de Julho terminou, enfatiza, a disputa terminou, o futebol de Passo Fundo esfriou. Prova de que sua pujança e sua força não eram motivadas apenas pelo espetáculo esportivo, havia outra função bem mais profunda. Sabíamos onde estavam os demônios. Para alguns, os demônios eram verdes e estavam lá no estádio da montanha. Para outros, os demônios eram vermelhos e se alojavam onde hoje é a rodoviária, no Estádio Celso Fiori.
No futebol, finaliza Jorge Alberto Salton, ensaiamos a vida, treinamos a vida. Aprendemos a tolerar as frustrações nas sofridas derrotas. Ele conduz nossos bons sonhos adolescentes. E, acima de tudo, ajuda a organizar nossas disputas sociais.
E não esqueçamos que o futebol também nos ensina a viver as alegrias desta vida como devem ser vividas: com urras e foguetórios.
E com esse belo histórico feito pelo meu primo Jorge Alberto Salton, finalizo esse artigo.
Olha Jorge Alberto Salton, Carlos Firmbach Annes
Muito bom, Lena.
O teu material é muito bom
Valeu Lena, excelente.
Obrigada Cacá, bjs
Lembra dessa época Marco Weissheimer?
Claro que sim, Lena Annes. Me criei no Vermelhão da Serra. Eu não sabia dessa relação entre a origem de Gaúcho e 14 de Julho e a guerra entre maragatos e chimangos. Grande história esta.
“No futebol, finaliza Jorge Alberto Salton, ensaiamos a vida, treinamos a vida. Aprendemos a tolerar as frustrações nas sofridas derrotas. Ele conduz nossos bons sonhos adolescentes. E, acima de tudo, ajuda a organizar nossas disputas sociais.
E não esqueçamos que o futebol também nos ensina a viver as alegrias desta vida como devem ser vividas: com urras e foguetórios”.
Muito bom! 😉
Olha Angela Fragomeni