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Há algumas décadas atrás – “décadas”, já no plural, infelizmente – eu me transportava nos fins de semana para inesquecíveis expedições pelo fantasioso universo das grandes batalhas no videogame. Era a busca pelos tesouros e conquistas inexplicáveis para os adultos. Daquelas coisas que só quem vive o tempo entende.
Mas o caminho não era nada fácil. Era preciso, para atingir a vitória, ultrapassar um sem número de desafios intermediários, adversários que eram inimigos surgidos das trevas não para disputar espaço, como um mero concorrente a um troféu de vencedor, mas simplesmente para exercer o papel de barreira divisória entre nosso fracasso e conquista. Não tinham identidade própria nem uma alma como a nossa. Eram sombrios, surgidos da mitologia do mal, que o ser humano insiste em construir ao longo da sua civilização para saber separar o certo do errado. Pareciam existir somente para nos frustrar e testar nossos limites. Levantavam-se de sua hibernação milenar com o objetivo exclusivo de ser nossa provação, para então, quando vencidos, ou vencedores, imergirem novamente por mais sabe-se lá quantos milênios na mais escura profundeza dos mares, calabouços ou subterrâneos, à espera do próximo herói que os desafiasse para salvar a humanidade.
Ontem, assistindo a Real Madrid x Al Ain, me lembrei dessa época.
Nada disso que escrevi depende exclusivamente do resultado. O que se viu sob um estrelado céu no estádio Zayed Sports City, em Abu Dhabi, foi apenas o cumprimento protocolar de uma tarefa corriqueira. O campeão europeu estraçalhou um honrado time local por folgados 4 a 1, num resultado em que vencedores de apostas não ficaram ricos, e perdedores não tiveram muito prejuízo – poucos seriam loucos de pôr a prêmio muita coisa por uma vitória árabe.
O que o resultado de ontem nos trouxe foi apenas mais um capítulo de uma história maior, que vem sendo contada nos últimos cinco ou seis anos. A história que reflete o Império Madridista no futebol mundial. Essa, sim, é pesada como a autoconfiança dos jogadores blancos, e depende de cada um desses capítulos.
Assim, cada dia que o Real ganha mais um troféu, essa época vai ganhando contornos mais claros.
Às vezes eu me pergunto se o torcedor do Real Madrid se sente proprietário de seu clube, ou se só o assiste vencer, constrangido por estar diante de uma força muito acima daquilo que seu apoio local poderia proporcionar. Los merengues têm sido, atualmente, muito mais do que o maior time do planeta. O Barcelona já o foi, no período glorioso de Guardiola, Xavi, Iniesta, Messi… chega. O Milan teve seus dias com Van Basten, Baresi, Maldini, Gullit. Lembro ainda do Ajax de Cruyff, do Bayern de Beckenbauer.
Mas só este conjunto, que foi capaz de explorar ao máximo o sistema econômico do futebol mundial atual para ser tricampeão – pasme – consecutivo de uma Liga dos Campeões disputadíssima, alcançou a proeza de reeditar a si mesmo, quando Di Stefano, Puskás, Gento e cia atingiram um pentacampeonato europeu, em moldes muito mais mastigáveis, no final dos anos 50.
O uniforme branco do Real parece lhe emprestar um semblante ainda mais místico e “ermo”, tal qual o dos temidos adversários da mitologia. É uma imagem neutra. Não oferece um carisma especial, que o humanizaria e remeteria a um herói com coração, como o lindo blaugrana do Barcelona. Não tem estilo de jogo, perfil histórico. Tem apenas os melhores. Ponto final. É apenas o Império (meu amigo Gabriel Rostey mandou bem nesse termo), Il Dominato, a Fortaleza, o portal de transposição entre os pretendentes e os iniciados. A encarnação do poder na Terra através do futebol. Está lá apenas para impedir e testar as pretensões de quem ambiciona conquistar um troféu Fifa que não é de ninguém – tão somente está sob sua posse, até que um mortal consiga arrancá-lo para expor orgulhosamente em panteões locais para seu povo.
Louvado seja quem quer que seja que Cristiano Ronaldo foi embora. Foi tentar ser um humano numa Juventus que respira oxigênio e pleitea um dia transpor o chefe de todos os monstros deste game feito por gente do mundo real chamado futebol.
O que dizer de Sergio Ramos, o zagueiro mais poderoso do mundo? O capitão é forte sem deixar de ser rápido, ágil, habilidoso e decisivo, possuidor de cabeçada certeira e tatuagens por todos os cantos, que lhe conferem o aspecto de um desses zumbis desapegados do próprio corpo, surgido das catacumbas apenas para quebrar um Mohamed Salah, ou fixar inexpressivamente os olhos na direção de um japonês ou árabe abnegado no primeiro minuto da partida, e o fazer intimamente pedir desculpas por pretender vencer o jogo.
Que tal ver um sereno Gareth Bale no pódio dos melhores do Mundial? O que fazia ali, entre seres humanos? Não penso ao contrário. O Mundial Fifa deveria premiar o melhor entre estes, e não o galês, um gigante intruso que usou o momento como apenas mais um na temporada para dar sua resposta aos críticos de Madrid, agora que é o titular substituto de Cristiano Ronaldo. O brasileiro Caio e Borré, do River Plate, comemoraram seus postos como legítimos campeões. Diante de Bale não passavam de tietes.
E Modric, o motorzinho mais potente da história? Finalmente reconhecido até em Copa do Mundo e nas premiações. Esse cara não vai cansar nunca? Precisava ter talento com a bola nos pés, ainda por cima?
Você viu Messi, seus gols e sua precisão, você viu Ronaldinho e sua magia, você viu o tiki-taka, mas não deve ter visto a laranja mecânica de 74. Não importa. Tenha agora uma certeza: está diante da Ordem Mundial. Tão somente isso. O que é o suficiente pra dimensionar.
Espero que acabe logo. O mundo precisa de um campeão em carne e osso.