Créditos da imagem: Reprodução / Blog Investimento Futebol
Depois do artigo sobre as Dívidas, vamos para outro artigo técnico. São artigos mais chatos, eu sei, mas ajudam aos torcedores a entender a dinâmica de gestão dos clubes. Desta vez vamos falar sobre Fluxo de Caixa.
Talvez seja a peça mais importante dos demonstrativos financeiros, aquela que mais impacta e incomoda a vida dos diretores financeiros dos clubes. E a que mais explica o que está acontecendo.
Resumindo, o fluxo de caixa é o controle do que entrou e saiu do caixa do clube, efetivamente. A construção tem origem no Demonstrativo de Resultados (DRE) e conta com movimentos nas contas de Balanço. Então, é estruturado da seguinte forma:
A conta inicial é bastante simples: tomamos todas as receitas e deduzimos os custos e despesas que efetivamente passaram pelo caixa. Na receita faremos um ajuste disso a seguir, mas nos custos e despesas significa necessariamente excluir uma série de números que aparecem na DRE. Por exemplo, a Depreciação e Amortização, que é um movimento meramente contábil, a baixa de registro de atletas vendidos, que também é um simples registro contábil. São números que não transitaram pelo caixa do clube – o clube não teve uma “despesa” pela venda do atleta, isto já foi um investimento feito na sua contratação – e usá-los na avaliação de um clube não fazem o menor sentido.
Daí tem que vir o especialista, ler os dados e fazer os devidos ajustes, para não passar informação errada para o torcedor.
Mas o que significa “Geração de Caixa”? Por que é importante saber isso? Eu só vivo de títulos!
É, mas uma parte dos títulos vem daqui. Geração de Caixa é a diferença entre o que se ganha e o que se gasta. Na verdade a ordem é inversa. Pense num sapato. Para fazer o sapato o sapateiro gastou 10,00 de couro, 5,00 de borracha e seu trabalho custou 15,00. Ou seja, o custo total foi de 30,00.
Na prática, se ele não tivesse feito o sapato teria guardado os 15,00 que gastou e não teria investido o tempo que lhe custou 15,00.
Daí ele vendeu por 40,00. Ou seja, como gastou 30,00, o que sobrou foram 10,00. Significa dizer que dos 30,00 iniciais ele recuperou o valor aplicado no produto e ainda aumentou em 10,00 sua conta. Remunerou seu trabalho (salário) e tem 25,00 em caixa (15,00 da matéria prima e 10,00 do lucro).
Esses 10,00 tem duas interpretações possível, dependendo da peça que está sendo analisada. Se for na DRE pode ser chamado de “lucro”. Mas se for no Fluxo de Caixa é na verdade a Geração de Caixa.
E por que não usamos então apenas DRE? Porque na DRE não constam informações importantes, como pagamentos de dívidas e Investimentos.
Bem, saindo do EBITDA (Earnings Before Interest Tax Depretiation and Amortization, ou seja, o resultado antes de Juros, Impostos, Depreciação e Amortização) temos as seguintes contas, e uma delas é bem chata de fazer:
A partir dos itens mais simples, temos os Investimentos em suas 3 possibilidades. É o dinheiro gasto para contratar atletas e investir na base e na estrutura. É aqui que vemos quanto o clube gastou contratando aquele lateral que não funciona ou o volante que está comendo a bola. Por isso o EBITDA é importante. A partir dele é que sabemos quanto o clube pode gastar, se tem para gastar ou se gastou por conta, pendurando a fatura.
Lembra do sapateiro? Pois bem, daqueles 10,00 que ele gerou ele teve que pagar 3,00 num martelo novo, então agora lhe restam 7,00.
E voltando a falar em pendurar a fatura, entra a Variação de Capital de Giro. Vou tentar simplificar e vamos chamar o sapateiro de novo. Aqueles 10,00 que ele tinha, na verdade não tem. Não agora. Ele vendeu o sapato em duas vezes, porque o comprador pagou 35,00 à vista e deu um cheque de 5,00 para 30 dias. Ou seja, no caixa entraram só 35,00. Estes 5,00 que sobraram transformam-se numa Conta a Receber, e no fluxo de caixa deve ser deduzido do EBITDA! Espera um pouco, vamos fazer a conta:
E tem mais! Ainda temos os estoques que foram usados para fazer o sapato. O couro e a borracha que estavam em estoque viraram caixa quando foram vendido. Então, na conta de Capital de Giro eles “retornam” ao caixa, representados aqui pelos 15,00 de “Variação de Capital de Giro”.
Agora vamos refazer essa história:
= Caixa Inicial: 15,00;
(-) o sapateiro usou esses 15,00 e comprou couro e borracha;
(-) investiu 15,00 de tempo e fez um sapato, que teve custo final de 30,00;
(+) vendeu o sapato por 40,00;
= gerou 10,00 de caixa
(-) ficou de receber 5,00 no mês que vem;
(+) retornou 15,00 para estoque;
(-) gastou 3,00 para comprar um martelo;
(=) saldo final de caixa: 17,00
Quando receber os 5,00 que ficaram para o mês seguinte terá 22,00 em caixa. Se não tivesse comprado o martelo novo, teria 25,00.
Ou seja, dos 15,00 iniciais ele aumentou em 10,00 seu caixa.
Vamos retomar a questão da Variação de Capital de Giro e aplicá-la a um clube de futebol. Esses movimentos são muito comuns e tem vários motivos. Nas vendas de atletas, quando o valor é parcelado, aparece cheio nas receitas mas depois o que ficou para receber é deduzido aqui. Assim como nas compras de atletas, o valor total entra na conta Investimentos como uma saída, mas depois entra como positivo no giro. Quando antecipa receita de TV é a mesma coisa: a receita entra cheia mas depois o valor que já foi recebido é deduzido nessa conta.
Três exemplos:
Ufa! Ok, não é simples mesmo. Mas é por isso que é fundamental entender o fluxo de caixa. É com essa gestão de entradas e saídas que os clubes bem estruturados se organizam, investindo hoje para pagar amanhã, gastando menos agora porque o dinheiro de uma venda entrará só no próximo anos e por aí vai.
Mas não acabou. E vai ficar mais simples.
Desse valor chamado aqui de “saldo de caixa” tem que pagar os Impostos, especialmente o Profut, e pagar as Dívidas Bancárias e custos financeiros. Por isso é fundamental sobrar dinheiro nessa conta. Quanto mais sobra, mais dívidas o clube é capaz de pagar. E então, mais robusto ele fica e consequentemente pode se reforçar e brigar por títulos.
Vindo para o mundo real, isto ajuda a explicar os movimentos de investimentos de clubes como o que gastaram considerando certamente essa dinâmica do fluxo de caixa. No final, o fluxo tem que casar, seja hoje, seja ano que vem. Essa gestão é o grande desafio dos financeiros dos clubes, que tem que girar pratos todos os dias para manter o clube saudável e ao mesmo tempo garantir elencos competitivos.
É por essas e outras que não gosto da Ditadura dos Rankings. Ela esconde uma série de impactos, porque ficam falando apenas na maior receita, no maior lucro, na maior dívida, mas isso isoladamente não significa nada. Mas gera um monte de click.
Entenderam agora porque o fluxo de caixa alimenta os títulos? Se não, me falem, porque vou tentando ajudar a explicar.
PS: Em exemplo de como o fluxo de caixa afeta todo mundo. Vamos falar do Netflix.
O Netflix teve receitas de US$ 15,8 bilhões e seus custos caixa foram de US$ 6,5 bi. Ou seja, gerou US$ 9,3 bilhões. Bastante, não? Sim, e ainda teve entrada de caixa vinda da variação de capital de giro de US$ 3,41 bilhões. Mas investiu US$ 13 bilhões na aquisição de conteúdo, que são todas as séries que eles produzem com exclusividade.
Com isso, o Saldo de Caixa foi negativo em R$ 290 milhões. E a empresa teve que ir aos bancos pegar empréstimos de US$ 4,1 bi.
Isso tudo mesmo com US$ 1,2 bilhão de lucro. Mas a dívida da companhia, que em 2017 era de US$ 3,7 bilhões passou a ser de US$ 6,6 bilhões. Ou seja, as receitas crescem, tem lucro, mas os investimentos consomem tudo e mais um pouco. Em algum momento a corda arrebenta.