Créditos da imagem: Montagem / No Ângulo
Muitos comentários foram proferidos após a retumbante virada madridista em cima do Liverpool. Especialmente sobre a atuação de Vinícius Junior. Tão marcante que atolou no ridículo a narrativa boçal para defender o racismo nas arquibancadas e a violência no gramado. Contudo, é curioso notar como um dos predicados dele, bem como do colega Rodrygo, convenientemente é deixado de fora nos elogios. Talvez porque também atole no ridículo o privilégio dado a estrelas de terceiro escalão (e olhe lá) que atuam no Brasil. Estou me referindo ao fato de que, além de jogar muito no ataque, o astro do Real participa ativamente da marcação. Sem o famoso “migué”.
Houve um tempo, no século passado, em que o papel defensivo do ponta era dar apoio moral a quem marcava. O prenúncio de mudança aconteceu quando um ponta-esquerda chamado Zagallo* passou a ajudar na marcação. Mesmo assim, a regra geral seguia amaldiçoando quem fizesse atacante marcar. Pulando a história para os dias atuais, agora este dogma pertence a um museu. Fazer parte do ataque não significa isenção de defender. Não me refiro apenas aos momentos de pressão na saída de bola ou após esta ser perdida. Quando o adversário consegue alcançar o campo do seu time, qualquer formação com menos de oito jogadores é temerária. Gera espaços que permitem que até equipes pouco virtuosas, após controlarem o temor, instalem-se e aproveitem os novos espaços que surgem para tapar os buracos anteriores – efeito dominó.
Como a evolução do jogo levou à distinção clara entre atacantes centrais e abertos, por questão logística é difícil dispensar estes últimos de marcar. Desde a base, todo garoto que ataca pelo lado deve defender. Não se trata mais de dar uma corridinha atrás do lateral e parar na linha do meio-campo. Precisa formar a linha até o final da jogada, senão alguém aproveitará o espaço que ele não cobriu. É uma das razões que levam o Real Madrid a contratar jovens brasileiros quando estes mal jogaram no futebol daqui. Assim podem ser lapidados atacando e também na defesa. Com o passar dos anos, eventualmente um deles pode ganhar uma cobertura tática, poupando físico para o ataque. Enquanto – e se – isso não ocorre, tem que ralar mesmo. Ou esquentar o banco e chorar as pitangas para algum repórter brasileiro condescendente.
É o que acontece na maior instituição futebolística do mundo entre clubes – quiçá até considerando seleções. Enquanto isso, num certo mundo encantado que sonhava enfrentar este mesmo Real Madrid, há quem espere um time equilibrado com seis atletas marcando e mais dois dando um miguezinho aqui e ali. Todos os treinadores já perceberam esta facilidade. Incluindo o atual técnico. Foi Vítor Pereira que, no segundo tempo da partida final da Copa do Brasil, assentou o Corinthians nas fendas do quarteto ofensivo rubro-negro e levou o jogo a uma inesperada decisão por pênaltis. A diretoria percebeu que as atuações com Dorival Jr, obtidas com doping emocional e pelo medo causado nos outros, não se repetiriam mais. Demitiram o técnico, porém seguem acreditando nos intocáveis do dilema tático. Algo como trocar o médico, mas não aceitar outro tratamento.
Logo vem a pergunta: e como deu certo no (cada vez mais) lendário Flamengo de 2019? A resposta estava atrás. Com uma defesa individualmente apta a jogar adiantada, o time de Jorge Jesus sufocava com tal intensidade que a equipe pouco tinha que formar linhas na defesa. Quando tinha, Everton Ribeiro e Bruno Henrique (ou Arrascaeta) eram quatro anos mais jovens e faziam o papel com alguma competência. Muita coisa, além da idade dos atletas, mudou. Os adversários tiveram tempo de respirar e estudar alternativas. A defesa adiantada também sumiu – por insuficiências individuais e de treinamento. Outro ponto foi a mudança na função de Gabigol, que passou a atuar vindo da direita. Foi por não saber (nem querer) marcar que mal jogou na Europa. Sobra para Everton Ribeiro – aos 33 anos. Um furo insolúvel sem mexer no imexível.
Ainda assim, como comentei em coluna anterior, o jornalismo esportivo continua pisando em ovos para apontar a falência do quarteto ofensivo do Flamengo. Por preguiça, ou medo de perder seguidores, minimizam ou fogem do aspecto que deveria fechar o caixão de uma formação vitoriosa, mas que taticamente era superada pelo menos desde 2021. Em pleno ano de 2023, grande parte do público futebolístico brasileiro não entendeu o absurdo que é marcar com sete jogadores – quanto mais seis. Grande parte da culpa pela desinformação vai para quem ganha dinheiro com ela. Lidar com a ignorância dá bem menos trabalho.
*Por sinal, é praticamente a única menção importante de analistas estrangeiros ao papel de Zagallo, seja como técnico ou jogador, na evolução tática do futebol brasileiro.