Créditos da imagem: Conmebol
O coitadismo que derruba
Volta e meia, ouve-se até especialistas dizendo que os problemas da América do Sul refletem a forma de colonização. Trata-se da expressão maior de algo que não foi trazido por ninguém. Falo do “desculpismo”. Logo fará duzentos anos das independências dos países sul-americanos. A culpa ainda é dos outros. Neste período, os Estados Unidos se autodizimaram numa guerra civil. Meio século depois, já era o país mais rico do mundo. A Europa se autodestruiu em duas guerras mundiais. Duas décadas depois (quando muito), estava reerguida. Japão teve duas bombas atômicas. Não tardou a se recuperar na mesma velocidade com que resolve os efeitos de um tsunami. Preferem botar a mão na massa em vez de se fazerem de coitados.
Há mais de trinta anos, Caetano Velloso perguntou se nada faremos senão confirmar a incompetência da América Católica – referindo-se à América Latina. A resposta segue “sim, confirmaremos”. Poucas coisas poderiam ser mais alegóricas que a transferência da decisão da Libertadores para a capital da antiga Metrópole – lembrando que mesmo o Brasil foi domínio espanhol quando a Espanha controlou Portugal. O que seria uma demonstração de excelência futebolística, com o plus da vibração de um dos povos mais ligados ao esporte, tornou-se um estorvo inviável. Mais de cinquenta anos esperando uma final, para depois desejar que ela nunca mais aconteça. Lembra um personagem de Chico Anysio, que disse “somos amigos há dois anos. Há dois anos estamos tentando nos encontrar. É por isso que somos amigos!” Latino-americano é outro papo, mãe…
Não se trata de preconceito ou desprezo. Individualmente, não faltam nomes de expressão e feitos dignos de orgulho. Seja com a bola ou com o cérebro, não há inferioridade – longe disso. O dramalhão começa quando se pensa em algo chamado senso coletivo. Não, não é coisa de comunista. Pegar o que é dos outros e dividir com todo mundo é roubo qualificado. Senso coletivo é bem diferente e não tem nada de incompatível com individualistas. É ser consciente de que até o mais egoísta precisa dos outros para obter o melhor possível. O homem, egocêntrico por natureza, só chegou ao topo do mundo animal porque abriu mão de parte de sua individualidade, somando esforços a fim de sair das cavernas para residências com água, gás e energia elétrica. Tivesse ficado no cada um por si, estaria com clava na mão, curtindo sua longa vida até os trinta anos – e olhe lá.
É nesse ponto que os ex-colonizados travaram. Não que tenham deixado de somar esforços, mas invariavelmente alguém tenta levar “unzinhos a mais”, que no fim reduzem ou inutilizam os proveitos que todos teriam. A Conmebol é um exemplo. Pega uma matéria-prima rica, que dividia (quando não prevalecia) conquistas mundiais com a Europa, e promove um festival de desperdícios em nome de vantagens aqui e malandragens ali. Em vez de obter um torneio continental de brilho, nivela por baixo. Por muito tempo, contou com vistas grossas de quem se vangloriava pelo que, hoje em dia, chamam de “futebol raiz”. Odes foram dedicadas a campos esburacados, arremessos de urina ensacada e, claro, hostilidades a atletas. “Libertadores é guerra” – bradavam com orgulho. Nada que as transmissões da Champions League não tenham desmoralizado. Faça gol, não faça guerra…
Evidentemente, logo vêm as desculpas. Se não é possível disputar atenção com a Europa na base da qualidade técnica, então há que se oferecer algo diferente. Até aí, faz sentido. A questão é o “algo diferente”. Poderia ser focado como a competição de onde sairão os futuros craques da Champions League, como foi Neymar – campeão de ambos os torneios. Mas lá vem outra desculpa: se privilegiarem a parte técnica, como ficam os menos favorecidos? Aí incham a competição e transformam vaga em Libertadores numa festa do caqui. Mais times, mais estádios capengas, mais grupos e fases com viagens exaustivas. Tornam a competição anual, fazendo com que clubes precisem reformular elencos desfalcados pela janela europeia, criando assim outra desculpa para a queda de padrão. Como cereja podre do bolo, decisões covardes contra a violência, como a dos “heróis de Oruro” e, agora, dos palermas de Nuñes.
Foi tudo isso, e não o colonizador, que fez a situação chegar ao atual grau de melancolia. Digo “atual”, porque não me surpreenderei se piorar. Não há como descartar que, nos próximos dias, outros fatos deixem o torneio sem campeão neste ano. E que, consequentemente, a América do Sul sequer tenha um representante no Mundial de Clubes. Mais: que, caso surja tal possibilidade, algum outro clube sul-americano tente se valer de contatos políticos para entrar de gaiato e “salvar” a competição. Não há senso coletivo e muito menos senso de ridículo.