Créditos da imagem: Santos FC
O maior parceiro de Pelé não era fácil. E não gostava de ser chamado assim
Não é fácil apontar onde termina a autoconfiança e começa a displicência. O pênalti decisivo cobrado com “cavadinha”, por exemplo. A rigor, pode-se afirmar que, quando resulta em gol, demonstra plena autoconfiança. Do contrário, revela displicência, indica soberba, denota desprezo pela importância da partida. Na realidade, em um simples (?) pênalti, há muitas nuanças entre a conquista e a derrota, entre a glória e a perdição, entre o céu e o inferno.
A “cavadinha” de Djalminha, convenhamos, não é a mesma de Alexandre Pato. Longe disso. Polêmico por definição, o assunto renderia intermináveis discussões de mesa de bar. Daquelas de esvaziar caixas e caixas de cerveja.
Se há um jogador que personificou como raros a dialética, no dia a dia, entre a autoconfiança e a displicência, esse jogador se chama Antônio Wilson Honório, o Coutinho. Ao morrer, com 75 anos, em 11 de março de 2019, foi homenageado com breves obituários, sempre destacando o fato de ter sido o melhor companheiro de ataque de Pelé. De fato, foi — embora não gostasse de ser lembrado só por isso. A troca de passes contínua e em velocidade dos dois craques, batizada de tabelinha por algum obscuro fã do jogo de sinuca, remete ao que de melhor ofereceu o futebol brasileiro. Mas tem antecedentes: quem viu o Vasco da Gama do final dos anos 40 e começo dos 50, conhecido por Expresso da Vitória, garante que Ademir de Menezes — fosse com Ipojucã, fosse com Maneca — já praticava a mesma jogada, com total eficiência e a rapidez das faíscas.
As tabelinhas de Coutinho com Pelé demonstravam, na prática, a sadia autoconfiança do centroavante santista. Ele não se diminuía ao ter como parceiro o melhor jogador do planeta. Jamais. Ao invés, a presença de Pelé, a inteligência de Pelé, o raciocínio rapidíssimo de Pelé potencializavam as artimanhas e a inteligência de Coutinho. Com a bola nos pés, o garoto de apenas 1,67 m — um centímetro a menos que o seu mais bem acabado herdeiro, Romário —, que se tornou titular do grande Santos com inconcebíveis 14 anos, 11 meses e seis dias de idade, se transformava em um gigante de romance medieval. Ao completar para o gol as tabelinhas, no entanto, muitas vezes deixava transparecer sua displicência.
Dono de uma crueldade milimétrica contra os goleiros, Coutinho, maroto, gostava de chutar conta a meta no contrapé do arqueiro, sem força. O suficiente apenas para que a bola ultrapassasse a risca do gol. Com frequência, ela sequer chegava às redes. Parava antes, zombeteira. Uma molecagem que Romário emulou sem saber, como se seguisse uma linhagem. Coutinho, no entanto, achava que seu futebol estava melhor representado nas pernas alquebradas do centroavante Reinaldo, que atuou pelo Atlético Mineiro nos anos 70. Pode ser.
Era comum, ainda, que, ao contrário de Pelé, o displicente Coutinho nem mesmo comemorasse o gol. Voltava ao meio de campo sem demonstrar emoção, frio como o Aquário de Santos. Agia como se cumprisse somente uma obrigação. Como se fizesse apenas o que o seu futebol permitia.
Conta-se que, em mais de uma oportunidade, o goleiro adversário, sorrateiro e ladino, retirou a bola de dentro das balizas e, sem que o juiz se desse conta, bateu o tiro de meta. Dessa forma, era como se o gol não houvesse ocorrido. O técnico do Santos, Lula, o maior fã de Coutinho, era também o seu crítico mais ativo, e menos indulgente. Nessas ocasiões, bradava colérico do banco. Coutinho? Dava de ombros. Era típico dele.
Se Mengálvio, o Pluto, o meia espigado que viera do Rio Grande do Sul, criara fama de desligado, Coutinho também não deixava por menos. No primeiro treino que fez entre os titulares do Santos, mal chegado de Piracicaba — onde, apesar da altura, costumava atuar como quarto-zagueiro—, nem mesmo conhecia de nome os jogadores, já famosos, do esquadrão santista. Ouvira falar de um ou outro, quando muito. Adorava jogar. Mas não acompanhava o futebol. Pra quê? Não dava o mesmo prazer que empurrar a bola pertinho do goleiro mas longe de seu alcance.
Em seu livro de memórias Bombas de Alegria – Meio século de histórias do Canhão da Vila (Edições Realejo, 2006), José Macia, o Pepe, o demolidor ponta-esquerda daquele Santos, conta que, numa das exaustivas excursões do clube pela Europa, saiu à noite com Coutinho. Estavam na Alemanha e foram a uma casa noturna, famosa pela orquestra. Um brasileiro que falava alemão os informou de que deveriam anotar sua música preferida em um papel e entregar aos garçons. A orquestra se incumbiria de tocar a melodia escolhida.
E assim ocorreu com Pepe, que pediu “Unchained Melody”. Coutinho também requisitara sua preferida, mas impacientou-se porque, passada uma hora, a orquestra não se habilitara a tocá-la. Decidido, ralhou: “Vamos embora, Pepe. Esses alemães não estão com nada, não tocaram a minha música”.
Intrigado, Pepe quis saber qual canção Coutinho havia pedido. A resposta: “O Pretinho gostou da filha da Madame”. Era o primeiro verso de “O Neguinho e a Senhorita”, de Noel Rosa e Abelardo da Silva.
Coutinho só não foi um artilheiro inconfundível porque justamente o confundiam com Pelé, nos jogos noturnos dos estádios mal iluminados. Era comum acontecer. Ser confundido com Pelé não era algo de tão nefasto, afinal. Ao contrário. Mas Coutinho não gostava. Sempre ranzinza, reclamava que, se a jogada fosse genial, atribuíam a Pelé; se terminasse em erro, caberia a Coutinho. Injustiça.
De qualquer maneira, nos nove anos em que defendeu o Santos, Coutinho ganhou sete títulos estaduais e cinco brasileiros. Foi campeão do mundo pela seleção brasileira (1962, embora, contundido, não tenha jogado, cedendo a vaga para Vavá) e bi mundial de clubes (1962 e 1963). Tornou-se artilheiro da Libertadores de 1961 (6 gols), Rio-São Paulo do mesmo ano (9 gols) e Taça Brasil de 1962 (7 gols). Em três partidas, fez cinco gols em cada uma. Uma delas foi contra a Ponte Preta, em 19 de novembro de 1959, na Vila Belmiro. Nada menos que a maior goleada da história santista: 12 a 1. Além dos cinco de Coutinho, houve quatro de Pelé. Um massacre.
Poderia ter feito muito mais gols. Não fosse a displicência. Ele tinha o mesmo problema de Romeu Pelicciari, Ademar Pantera, Claudiomiro, o centroavante Walter do Goiás e outros menos goleadores: engordava além da conta. Lutava contra a balança. Dureza. Lula, seu devoto e seu alterego, o obrigava a dar seguidas voltas correndo em torno do gramado do estádio da Vila Belmiro, usando agasalhos de lã. Era preciso derreter os quilos a mais. O garoto piracicabano, fã de quitutes e de uma cerveja bem gelada, amaldiçoava aqueles momentos. Xingava baixinho seu protetor e algoz. Para complicar ainda mais, em 1962, a cirurgia para a retirada dos meniscos do seu joelho direito, hoje uma operação de rotina, não foi bem-sucedida. Gerou uma artrose, que volta e meia o tirava de campo.
Pode-se avaliar a decadência — sim, decadência — do fabuloso Coutinho pelo número de gols pelo Santos, à medida que o tempo passava e seu peso aumentava. Em 59, ele fez 58 gols em 59 jogos. No ano seguinte, 34 em 41 partidas. Em 61, chegou a 77 gols em 74 jogos. No ano de 62, foram 52 gols em 47 porfias — média absurda de 1,10.
Nos cômputos de 63, chegou a 38 gols em 44 jogos. Em 1964, balofo e vítima de contusões, fez 30 tentos em 39 partidas. No ano seguinte, chegou a 37 gols em 45 contendas. Em 1966, já estava em inacreditável curva descendente: só 15 gols, em apenas 20 partidas disputadas.
Em 1967, totalmente fora de forma, só disputou duas partidas inteiras. Ainda não completara 24 anos, mas não estava nos planos de Antoninho, o técnico que substituiu Lula no Santos.
Naquele ano, assustada com duas acachapantes derrotas para o Cruzeiro de Tostão e Dirceu Lopes, o corrida ainda em 1966, a equipe praiana apressava a passagem de bastão. O time parecia envelhecido. Antoninho tirou da equipe titular Zito, Coutinho e Pepe. No lugar deles entraram Clodoaldo, Toninho Guerreiro e Edu. Fim de linha.
Pela idade, Coutinho ainda teria muita lenha para queimar. Mas a balança era implacável: estava pesando inacreditáveis 91 quilos, um acinte para o seu 1,67 m. A fita métrica também acusava: a cintura do craque displicente estava medindo 95 cm. Era como se Coutinho não mais se confundisse com Pelé, mas com a ferramenta de trabalho e objeto de prazer da dupla: a própria bola.
Redondo e ranheta, foi emprestado ao Vitória da Bahia. Ficou menos de um ano em Salvador. Começava a vida cigana que o levaria, primeiro, à Portuguesa de Desportos (1969). No mesmo ano, voltou ao Santos. Foi quando João Saldanha, então técnico da seleção brasileira, resolveu descer a serra para bater um papo com Coutinho. Tostão, o centroavante titular do escrete, sofrera aquela contusão no olho, que cercara seu futebol de incertezas. Saldanha acreditava que o único substituto à altura do craque do Cruzeiro seria Coutinho. Mesmo muito distante da forma ideal. Bastou, todavia, conferir a displicência de Coutinho. Saldanha desistiu.
O Santos também desistiu de Coutinho, que seguiu para o Atlas do México (1971) antes de o bicheiro Castor de Andrade resolver trazê-lo para o Bangu, já no ano seguinte. No Rio de Janeiro, deu zebra.
Em 1973, Coutinho, sem a mínima aparência de jogador profissional, vestiu a camisa de um time que também não tinha nome de time. Era o Saad, de São Caetano, batizado com o sobrenome do dono, descendente de libaneses. O clube havia trazido, além de Coutinho, dois ex-craques do Santos: o ponta-direita Dorval, 36 anos, e o trágico quarto-zagueiro (e volante) Joel Camargo, 27 anos, que mais tarde pegaria no batente como estivador no cais santista. O Saad tinha planos de chegar à Divisão Especial do futebol paulista. Amargava então a primeira divisão — que correspondia à segunda de hoje.
Em janeiro de 1973, um repórter da revista Veja foi a São Caetano ouvir Coutinho. Queria saber como se sentia vestindo, pela primeira vez, a camisa de uma equipe “de segunda divisão”.
“Sou profissional e o que interessa é o tutu”, respondeu Coutinho, aos 29 anos. E completou: “E, se precisar ir para um balcão de loja, eu vou”.
Esta autoconfiança que beirava a soberba ele começou a demonstrar nas entrevistas a partir dali. O homem brincalhão do convívio com os colegas transformou-se, pouco a pouco, no rabujento das entrevistas. Foi assim na insuficiente carreira como técnico. Continuou assim quando os repórteres o procuravam em seu retiro santista, nos bares em que encontrava Pepe, Mengálvio, Lima e outros companheiros de geração e títulos. Várias vezes, respondia com ironias, cofiando o bigodão que deixara crescer. E até algum sarcasmo. Como vivia? Trabalhava em escolinhas de futebol. Completava a renda com o aluguel de apartamentos.
Tudo piorou em 1989. Seu único filho homem, Kleber Wilson Honório, de 23 anos, sofreu um acidente de automóvel. O garoto, de que se orgulhara ao ver vergando a camisa 10 do Santos nos juvenis, como diria a crônica policial, não resistiu aos ferimentos.
Coutinho, enfim, emagreceu. Recolheu-se ao apartamento em que morava com a mulher, Vera Lúcia. Tinha a companhia das duas filhas, Rosangela Cleiry e Amanda Paola. Retirou-se ao longo de anos. Por fim, a amargura deu vez a um homem mais maduro e menos ressentido. Mas nem por isso amistoso.
Antônio Wilson Honório, o Coutinho, é o terceiro artilheiro do Santos em todos os tempos, com 370 gols em 457 jogos. Perde apenas para Pelé e Pepe. Teve, ainda, a glória de ter marcado o gol de número 5.000 do clube profissional que mais gols fez na história.
Displicente — ou muito autoconfiante —não ligava para esses feitos. Nos últimos tempos, menos evasivo, passou a conceder mais entrevistas. Em nenhuma delas, porém, comentou algo que escapou a todos os obituários por ocasião de sua morte, ocasionada por um infarto.
Enquanto Pelé cercou-se de louros ao completar os mil gols —não sem razão, claro —, enquanto Romário e até mesmo Túlio Maravilha faziam de tudo para deixar marcas redondas na quantidade de tentos, Coutinho mais uma vez, dava de ombros.
No dia 14 de janeiro de 1973 marcou o último deles, pelo Saad, um dos quatro com a camisa da equipe do ABC paulista. No total, Coutinho fez 370 gols pelo Santos, seis pelo Vitória, um pela Portuguesa de Desportos, 10 pelo Atlas mexicano, dois pelo Bangu e outros seis pela seleção brasileira.
Basta concluir as contas. No total, ele fez 399 gols. O de número 400, assim como o filho homem que Drummond não teve, faz-se por si mesmo.
Aviso: muitas das informações aqui contidas foram tiradas do ótimo livro Dez décadas – A história do Santos Futebol Clube, de Celso Jatene (Companhia Editora Nacional, 2012)
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