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Tenho visto aplausos a manifestações na mídia contra Leco. A mais aplaudida foi a do apresentador César Filho, crítico frequente da gestão. Mas tenho a impressão de que o próprio César e outros estão temporalmente equivocados. Passam a ideia de que o atual presidente é a causa dos males do clube. A rigor, ele é “apenas” efeito de uma estrutura social que, antes mesmo da retomada de títulos entre 2004 e 2008, já vinha deteriorando o São Paulo. Portanto, a quem realmente quiser entender e mesmo agir contra a Lei Coiote (ver coluna anterior), sugiro a leitura dos próximos parágrafos. Do contrário, vendo apenas uma parcela do problema, não se chegará sequer a parte da solução.
Há décadas, sob o pretexto de evitar que torcedores de outros clubes influíssem na política social, os estatutos do clube consagraram um sistema que pode ser chamado de “cardealismo”. Por anos pareceu uma boa ideia. O “problema” é que o SPFC cresceu – em instalações e troféus. A vontade de se vincular ao sucesso tornou os cardeais mais vaidosos, ao mesmo tempo em que deixavam de acompanhar a evolução do esporte. Nem assim deixaram de se considerar plenamente inteirados, porque viram jogar Bauer, Noronha, Zizinho, Gerson, etc… Como dizia Juvenal, julgavam-se parte do suposto 1 % da população que entende de futebol. Enquanto isso, os jovens que pretendiam fazer carreira no quadro associativo só tinham uma opção: bajular conselheiros vitalícios para um dia, quem sabe, fundar um novo clã no colégio de cardeais.
Outra consequência do crescimento foi a disputa política. Até 1988, eleição presidencial era formalidade. Foi quando um intruso se fez notar. Juvenal Juvêncio, diretor de futebol vitorioso e de passado misterioso, desafiou e venceu o então dinossauro Nunes Galvão. Foi a primeira grande crise, que não por acaso culminou com o que batizei de “não rebaixamento que houve” – Paulistão de 1990. De volta ao poder, Galvão o entregou a Mesquita Pimenta e levou a mesma dispensada que, décadas depois, Juvenal tomaria de Aidar. O fato é que os cardeais nunca aceitaram uma disputa saudável de ideias. Se a unanimidade não se faz possível, a alternativa é a disputa de conchavos. Ao sócio comum resta escolher uma pequena fatia do eleitorado presidencial, só decisiva quando os cardeais estão extremamente divididos. Do contrário, viram figuração.
Tal regime de panelas não seria tão daninho se, como Norte, estivesse o desempenho da equipe. Seria lógico demais para os suntuosos cardeais. Tanto não é relevante que, entre os anos de 1994 e 2002, a chapa da situação foi eleita seguidamente, sem sofrer cócegas – incluindo a derrota de Leco contra Paulo Amaral. Neste período, o São Paulo passou longe da Libertadores e restrito a dois títulos estaduais, que já perdiam relevância. Paralelamente, os rivais Palmeiras e Corinthians acumulavam conquistas. Ainda assim, Marcelo Portugal Gouvêa precisou se aliar ao complicado Márcio Aranha para vencer Amaral por míseros quatro votos. E Aranha seria um dos incômodos do seu primeiro ano de gestão. As inúteis brigas com – adivinhem – Leco fizeram com que MPG dispensasse ambos e tirasse Juvenal do sarcófago. Um supertrunfo que, mais adiante, custaria boa parte do baralho.
O rompimento com o bloco de Aranha traria dores de cabeça para a reeleição de MPG. A primeira participação na Libertadores em dez anos teve muito menos peso do que deveria. Nova vitória apertada. Tranquilidade, só na eleição do sucessor Juvenal. Este mostrou ter aprendido a lição política e, além do time, cuidou de agradar (entenda-se: dar agrados) os conselheiros. Os títulos escassearam no segundo mandato. As gentilezas, não. Foi assim que, de forma esdrúxula, a infame eleição do golpe foi mais esmagadora que a anterior, com o então bicampeonato brasileiro (o tri viria no fim de 2008). Para tal placar, também foi decisiva a participação do supremo dos supremos, Laudo Natel. Se Aidar foi o suporte (anti) jurídico do golpe, Natel foi o moral. Tanto que só o idealizador do malfadado São Paulo Madrid, Edson Lapolla, aventurou-se pela oposição.
Mesmo com todas as justificativas para o terceiro mandato se estrepando (incluindo a história do Morumbi na Copa, que “só” Juvenal seria capaz de conseguir), o grupo amarelo seguiu intocável. Em 2014, Leco esperava ser alçado ao cargo que disputara em 2000 – e depois abriria mão de disputar em favor de MPG. Mas havia uma última desculpa do golpe, que era justamente não deixar este sonho se realizar. Ao menos isso Juvenal tentou cumprir, ao lançar o arquiteto da marmelada como sucessor. Quem não gostou foi o ex-genro Marco Aurélio Cunha, que mudou para a oposição ao lado de Kalil Abdalla. A patética tentativa nem seguiu até o fim. Após um ano de emoções com o golpe do golpe (e o golpe em sua própria cara), Aidar foi forçado a renunciar. Só então Leco herdou a presidência. O SPFC já estava endividado e apequenado. Faltava apenas a cereja estragada.
Com as presepadas de Leco no mandato tampão (um quase rebaixamento em 2016, além do primeiro “aeroleco”), a oposição tentou se turbinar com o apoio de Abílio Diniz – ex-aliado de JJ. Mas duas escolhas desastrosas resultaram na reeleição. A primeira foi acreditar que Julio Casares, ex-pitbull de Juvenal, realmente toparia ser o candidato. Casares enrolou até o último momento e fechou com Leco. Restou buscar o ex-presidente Pimenta, às pressas. Contra um telhado de vidro (Pimenta nunca explicou, sem subterfúgios jurídicos, o que conversou com o empresário Todé na fita revelada em 1994) e aproveitando a imprensa amiga (um jornalista chegou a garantir um grande patrocínio, na noite da votação), finalmente Leco pôde dizer que ganhou nos braços do povo. Ao menos o “povo” que contava.
De toda essa história bastante sintetizada, o leitor percebe que o anacronismo do sistema cardealista não tem apenas oito anos. Já nasceu fadado a criar mais entraves que caminhos. O bojo da política é decidido por conselheiros vitalícios divorciados da realidade do futebol, além de poucos se lixarem para ela. Não querem saber de resultados, mas favores. Ingressos, passagens, um protegido na diretoria de latrinas e estão conversados. Mudar esse sistema por dentro é inimaginável. Apenas a martelada de fora (no sentido figurado, bem entendido) pode agitar as estruturas. Para tanto, a torcida são-paulina precisa voltar a ter orgulho do que era – a mais chata do Brasil. Nenhuma revolução foi feita por bobos da corte.