Créditos da imagem: Futebol de rua
Se eu pudesse – e se meu dinheiro desse – compraria um terreno baldio na antiga Pereira Nunes, quase esquina com Dona Maria. Um terreno daqueles tempos em que a Chica da Silva, travestida de Isabel Valença, jogava saquinhos de Cosme e Damião pra molecada da Aldeia Campista, que só queria mesmo era ver aquele sorriso enorme e branco, naquelas bochechas de propriedade do Seu Osmar.
Um terreno daqueles que hoje é prédio de dois blocos, com garagem pra 2 carros de cada apartamento (Imagina quanto carcará pra fazer anel?!?!). Prédios tão altos que fazem sombra até na Praça Varnhagem e da cobertura dá pra ver a Praça Saens Peña, cujos cinemas se foram junto com os vira-latas, gatos, morcegos e gambás, também baldios. Um terreno daqueles que ninguém sabe quem é o dono. De quatro mangueiras, três jaqueiras duas goiabeiras e uma jabuticabeira, onde o vento entrava de proa e de popa, e que no meio tinha um campinho de terra batida, com algumas raízes e uns tantos buracos, do tamanho exato pra jogar um “três na linha e um no gol”. Partida de dez, virando em cinco, quem vencia jogava com o time de fora. Os de dentro escolhidos no par ou ímpar, os de fora com a sobra e um bom que chegasse depois. G-18 era pros grandes. Dente de leite pros pequenos.
Na pelada de rua as regras eram poucas e realmente claras. Quem ganhava escolhia o craque e quem perdia dava a saída. Bola no alto não saía. Estourada era da defesa. Bola na mão era “rende-se” (do inglês hands), e não tinha esse papo de “teve intenção”. Todo mundo “tinha intenção”. A saída era à bangu (com agudo, porque oxítona que se prezava, levava acento agudo no U final). As traves eram de paralelepípedo, com oito passos de distância entre eles. Ou elas, não me lembro bem o gênero. Acho que naquele tempo ninguém se preocupava com essa coisa de gênero, a não ser que viesse acompanhado do número e do grau. Bola alta era fora, desde que a defesa gritasse primeiro. Se não, era decidido no empurra-empurra, que é uma versão 1.0 da Lei do Mais Forte. Drible entre as pernas valia gozação. Lençol sempre acabava num Vai-querer-o-Quê. Nos clássicos de time-contra, o perdedor amarrava os tênis e jogava no fio, porque todo mundo jogava descalço e quem jogava de tênis era filhinho de papai. E se ninguém aliviasse, ainda ia tomar um “Nescau”, pra aprender a não ser filhinho de papai.
Nas horas vagas, entre o marraio e o companha, os menores saíam da torcida e invadiam o espaço com seus sacos de bolinhas de gude, cavando búlicas e tomando cascudos por estarem esburacando o campo. Ou então, marcando triângulos. Sempre de olho, na espreita do grito fatal: “Apagou a luz”. E os grandes invadiam o triângulo pegando as bolinhas que não conseguíamos livrar da sanha assassina. E lá se iam os olhinhos, bilhas e pistos, sem choro nem vela. Reclamar com quem? Caguete merece cacete. E o bispo, possível consolo, morava lá em cima do Sumaré. Dava pra ver a casa dele, mas era muito longe pra alguém ir lá se queixar. O 614, Cata Mendigos, nem passava perto. A gente olhava, rezava, mas as bolinhas… não voltavam. Difícil era explicar pro pai que tarraram as bolebas. A solução era desviar dinheiro da pipa, mas terreno baldio não era lugar pra pipa, porque, como já explicamos, os terrenos baldios da Aldeia Campista eram cheios de árvores enormes.
Nesses mesmos terrenos, com suas frutas apetitosas e bichos nojentos como ratazanas, morcegos e gambás, acontecia também a iniciação sexual do menino suburbano daquela área. Lá corriam as aulas teóricas, onde se aprendia a tocar de ouvido, ou praticando nas mangas e goiabas. “Assim se beija! Assim é chupão ! Diz aí, aquela lá… tá com ou sem calcinha? Pelo andar, diz aí, a desquitada que mudou agora, gosta muito… ou pouco? Passa a revistinha pros moleques ali. O primeiro a ficar de pau duro já sabe: Nescau!”.
E assim iam se passando os dias até que a mãe começasse a passar o uniforme da escola e o pai a perguntar pelo dever de férias. Eu nunca soube se a vida normal era ali no terreno, ou na escola. Meu pai dizia que era na escola. Eu aceitava, mas por dentro duvidava. O que tenho certeza é de que não podia haver no mundo, função melhor prum terreno baldio, do que a vadiagem e a brincadeira. Mas os caras acharam. Fazer prédio e ganhar dinheiro.
Vai entender os adultos…
“Um terreno daqueles tempos em que a Chica da Silva, travestida de Isabel Valença, jogava saquinhos de Cosme e Damião pra molecada da Aldeia Campista”. Amei as entrelinhas. Saudades
LINDA CRÔNICA!
Na santa terrinha, população para jogo Bangu x Madureira, os paralelepípedos arrebentavam com os dedões, os campos eram abertos, mas a parte das desquitadas não existia..rrss
Excelente! Por mais textos lúdicos no jornalismo esportivo!!! 😉
Nem vivi isso, mas já tenho saudade!!!!!! Lindo!!!!!!!!!!!
Que belo texto! Li isso tudo pensando que na atualidade vi muito mais gente jogando futebol nas ruas de Paris do que aqui em São Paulo… 🙁
Muito bom.
Já existia a Praça Niterói entre dona luiza e dona zulmira. Bela quadra, que foi destruida para fazer um dos piscinões para recolher agua de chuva e que nada adiantou.
Ops , rua santa luiza