Créditos da imagem: Rodrigo Coca / Agência Corinthians
Para completar a abordagem do processo criminal contra Cuca e outros jogadores do Grêmio por fato ocorrido em 1987, faço as seguintes observações:
1 – em primeiro lugar, quero corrigir qualquer menção que tenha feito a supostamente não haver violência presumida no Código Penal brasileiro por ocasião dos fatos. Havia. Fosse cometido no Brasil, mesmo sem violência ou ameaça, o fato seria tipificado como estupro.
2 – todavia, uma vez que o fato se deu na Suíça e teve vítima sujeita à legislação do país, não é correto dizer que Cuca e os demais praticaram estupro, nem que foram condenados por estupro. Lá o mero envolvimento em ato sexual era considerado um crime, porém de menor gravidade.
3 – no dia 28 de abril, o site GE, com cópia da primeira página da sentença (o cabeçalho) e informação de funcionária do Poder Judiciário suíço, confirmou que os possíveis crimes analisados pelo julgador eram de ato sexual com menor de 16 anos (pela máxima de cinco anos de prisão) e coação (pena máxima de três anos). Este último não é contra a liberdade sexual, mas a liberdade individual, tendo a redação abaixo no Código Penal Suíço:
“Quem, usando de violência contra uma pessoa ou ameaçando-a de dano grave, ou impedindo-o de qualquer outra forma na sua liberdade de ação, a tiver obrigado a fazer, a não fazer ou a permitir que se faça, será punido com pena privativa de liberdade de três anos no máximo, ou uma penalidade pecuniária.”
4 – portanto, desde logo há que se dar como nada descartável a hipótese, com base no documento processual de fls. 915 (único liberado para leitura), de que a sentença não tratou nem da análise de possível estupro, nem do que chamávamos de atentado violento ao pudor (quando o ato sexual decorrente da violência ameaça era diverso da penetração vaginal). A propósito, eis a redação do artigo que fala de estupro no Código Penal Suíço:
“Quem, nomeadamente por meio de ameaças ou violência, exercendo pressão psicológica sobre a sua vítima ou colocando-a incapaz de resistir, terá forçado uma pessoa do sexo feminino a submeter-se ao ato sexual, será punido com pena privativa de liberdade de um a dez anos.”
5 – considerando que a parte inicial de uma sentença normalmente se refere à acusação que será analisada, não à que o juiz definiu no final, ouso ventilar que não apenas o juiz, como quem acusou os atletas não teve convicção de que o ato de coação teria sido feito com o objetivo de manter relação sexual de qualquer espécie. Ou seja: não haveria certeza, por parte de quem formulou a acusação, de que as provas asseguravam a conexão entre a grave ameaça e o ato sexual com a vítima de 13 anos.
6 – ainda que a hipótese do item anterior não corresponda à verdade quanto ao acusador já ter descartado crime sexual mais grave de plano, já que estamos falando de uma única folha iberada, o fato é que foram estes os crimes pelos quais se deu a condenação. Então como o juiz (possivelmente confirmando opinião de quem acusou) veio a considerar que ocorreu ameaça de dano grave (coerção) E ato sexual com menor de 16 anos, mas não ligou um ponto a outro para definir a conduta como crime de estupro? Esta é a questão mais intrigante de todo o caso.
7 – a única resposta que considero plausível é que, como já comentado acima, não houve dúvida sobre a ameaça de dano grave para que a vítima fizesse algo contra sua vontade, mas resultou não totalmente provado que este algo involuntário seria a relação sexual em si. Na dúvida sobre o estupro (coação determinante para o sexo) ter acontecido, optou por enquadrar os réus por crimes subsidiários. Daí somatória de quinze meses para o que poderia, se estupro fosse, ter resultado em pena maior.
8 – a despeito de a somatória das penas máximas (3 + 5) dos crimes aplicados ser próxima à de estupro (10), um crime sexual de alta gravidade tenderia ser punido a partir de um piso inicial superior. Mas é bom destacar que, na Suíça, considera-se que a quantidade de pena é, em termos de prevenção de criminalidade, menos importante que a certeza de que o agente será descoberto e condenado. Punir uma única pessoa com dez anos e não conseguir nem julgar outras cinquenta não ajuda muito em lugar algum.
9 – pessoalmente, sem ter como ler o processo e a sentença, não deixo de ficar intrigado. Num olhar elementar ante cenário com uma mulher (de 13 anos, ressalte-se) rodeada de homens, impedida de sair e realizando sexo no mesmo contexto, mostra-se realmente árduo vislumbrar dúvida razoável sobre a finalidade lasciva da ameaça. Mas a Justiça Suíça vislumbrou tal dúvida e agora não cabe mais questionar.
10 – de todo modo, a despeito de réus e defensores não terem alegado fatos necessariamente verídicos (Cuca teria sido reconhecido inclusive como um dos que fizeram sexo), no final das contas nenhum deles veio a sofrer condenação por estupro, nem outro crime de gravidade isoladamente análoga ou similar.
Portanto, quem chama publicamente o técnico de estuprador está falando uma inverdade e correndo o risco de ser processado – civil e criminalmente – por ele. Dizer que praticou crime de ordem sexual, OK. Dizer que a Justiça local foi aparentemente generosa na fixação da pena (talvez até na acusação), também. Dizer que a versão de Cuca é duvidosa, ou mesmo mentirosa, é plenamente aceitável. Mas imputar um crime pelo qual não foi condenado pode ser tido como ultrapassar a linha da liberdade de expressão impune. Sejam responsáveis como gostariam que os outros fossem se vocês estivessem na mesma berlinda.