Créditos da imagem: Marcelo Gonçalves/Agência O Dia
Sempre que o Fluminense se vê às voltas com a zona de rebaixamento, surgem comentários de que poderá pagar sua dívida moral histórica. Que dívida? Aquela por não ter voltado à primeira divisão pelos meios óbvios – ou seja, jogando e ficando entre os melhores da série B. Neste mar de narrativas dos dias atuais, convém rememorar os fatos para que os leitores mais novos entendam. Mesmo porque os acontecimentos foram bem além do clube das laranjeiras. Passaram, inclusive, por um polêmico atacante de origem oriental e, no final da história, uma participação especial do Rei do futebol. Vamos aos fatos:
1 – inicialmente, cabe recordar que o Fluminense foi rebaixado em três anos consecutivos. Primeiro em 1996, quando só caiam dos clubes. Após uma virada de mesa sob a justificativa de supostas suspeitas sobre arbitragens (as quais nunca foram sequer investigadas), não aproveitou a segunda chance e caiu de novo em 1997. Na série B, quando se esperava o pronto retorno em 1998, caiu para a terceira divisão. Em 1999, com Parreira de técnico e Roger Flores como revelação, venceu a série C e voltou para a série B. Foi quando seu destino passou pelo drama de outro clube do RJ – o Botafogo.
2 – enquanto o Fluminense saía do fundo para o meio do poço, a Estrela Solitária fazia das suas para não disputar o clássico na segundona. Para tanto, ainda na fase de classificação, contou com uma interpretação extremamente livre do então TJD, presidido pelo botafoguense Sérgio Zveiter (irmão do outro). O alvo foi o atacante Sandro Hiroshi, recém-contratado pelo São Paulo. Hiroshi se envolveu em duas confusões simultâneas. A primeira, que não tinha como afetar o novo clube, foi a descoberta de idade adulterada quando juvenil. A segunda tinha a ver com seu passe, cujos direitos eram disputados por Rio Branco (que o vendera ao tricolor paulista) e Tocantinópolis. Foi isso que usaram para salvar Marechal Severiano.
3 – agora é importante não se perder. Em razão da disputa dos clubes, a CBF determinou o bloqueio do registro do atacante, informando ao São Paulo que tal ato impediria seu repasse a outra equipe, enquanto o assunto não se resolvesse. Parecer da entidade assegurava que, sem prejuízo, o atleta poderia ser escalado sem problemas. Mas o Botafogo contava com outra visão por parte dos auditores do TJD. Até o dicionário Aurélio foi usado por um julgador, para transformar aquele bloqueio em proibição total. Resultado: tanto o Botafogo quanto o Internacional (também com a corda no pescoço) ganharam os pontos dos jogos contra o SPFC.*
4 – como conseguiu se classificar para a fase final, o São Paulo (do péssimo Bastos Neto, um dirigente padrão Leco) não levou o assunto adiante. Mas o Gama, que seria rebaixado com pontuação extra de Botafogo e Internacional, levou. Estando o caso encerrado na Justiça Desportiva, valeu-se da permissão constitucional (e do próprio Estatuto da Fifa na época, a despeito de a entidade ter ameaçado bani-lo) para questioná-lo na Justiça do DF. Fundamento: ao se valer de documento da CBF autorizando a inscrição, no mínimo o SPFC estava de boa fé e, assim, não poderia ser declarado perdedor. Foi concedida a tutela antecipada, determinando a volta dos resultados originais (6 a 1 contra o Botafogo e 1 a 1 com o Internacional).
5 – a CBF e o Clube dos 13 pensaram que não seria difícil revogar a decisão. Pensaram errado. Ou por convicção, ou por influência do senador José Roberto Arruda, o TJDF manteve-se firme. Todas as tentativas de recurso tiveram o mesmo fim. Com o tempo passando, a proximidade do início do Brasileirão fez cogitarem um Plano B. Ou Plano C de cinismo. Decretaram que não haveria Campeonato Brasileiro e em seu lugar, com clubes convidados, o Clube dos 13 faria a extraoficial Copa João Havelange **. Com Botafogo, Internacional e, adivinhem, FLUMINENSE. Nem o Gama, nem a Justiça comum aceitaram. Foi determinando que, fosse qual fosse a competição, o clube distrital teria que estar nela.
6 – sem saída que não fosse colocar o Gama na turma de cima, bem como para não haver revolta dos outros clubes (com novas liminares), um regulamento digno de Mary Shelley foi criado para dar a todos os módulos acesso à fase decisiva. Desde o principal (que tinha todos os envolvidos na polêmica, além do Fluminense) até o último. Foi assim que o Fluminense enfrentou seu único adversário vindo da Série B. Acabou eliminado. Foi nas oitavas-de-final. Campeão do módulo amarelo, o São Caetano empatou em casa e venceu no Maracanã. O Azulão acabaria sendo vice-campeão, perdendo para o Vasco da Gama em decisão até hoje questionada – mas isso é outra história.
7 – a Copa JH segurou o pepino de 2000, mas a situação teria que se resolver no ano seguinte. Afinal, oficialmente não existira Campeonato Brasileiro de divisão alguma em 2000. Portanto, pelas normas e decisões judiciais, os campeonatos de 2001 deveriam dar sequência a 1999 – com a série A tendo o Gama e não tendo Botafogo, São Caetano e muito menos Fluminense. Foi quando se fez presente o talento que ainda se exalta nos brasileiros: contemporizar. Um “pacto da bola” entre notáveis foi criado para acalmar não apenas a questão, como também as CPIs que estavam abertas. Entre os pactuantes, estavam a CBF, o Clube dos 13, o próprio João Havelange e… Pelé.
8 – entre as diversas passadas de pano, ajustou-se que a Copa JH seria oficializada como Campeonato Brasileiro de 2000. Para 2001, haveria uma primeira divisão com Gama, Botafogo e Fluminense. E o São Caetano, oficialmente vice-campeão brasileiro? Incrivelmente, tentaram deixar o time do ABC na segunda divisão, com Pelé tentando justificar o absurdo na TV. Não colou e, para evitar assanhamentos na Justiça, a Série A passou a ter 28 clubes – forçando um longo processo de enxugamentos. Assegurado em seus interesses, o Gama enfim desistiu da Ação e o futebol brasileiro seguiu sua vida. Com o Fluminense de carona.
Destarte, não é nada incorreto dizer que o Fluminense nunca retornou, “na bola”, à primeira divisão. Além disso, embora não tenha dado causa à celeuma que resultou na Copa JH, politicamente se aproveitou muito bem de sua existência. Apesar de o “pacto da bola” ter feito todos aceitarem (no máximo, com resmungos contrários) o retorno impróprio, não é exatamente uma das histórias que os tricolores mais velhos gostam de contar. É evidente que o melhor era nem ter caído, mas foram privados de uma versão edificante sobre a volta. Não precisaria ser outra batalha dos Aflitos como a do Grêmio. Bastaria uma vaga conquistada, no lugar de presenteada. Um rebaixamento poderia ser a chance, ainda que tardia, de corrigir esta lacuna. Se acontecer, será o lado “bom” – para todos – de um triste epílogo de temporada.
*por conta deste episódio, jornalistas e juristas esportivos pressionaram para que, em vez de a outra equipe ser declarada vencedora, o clube supostamente irregular perdesse 4 pontos. Acabou sendo a salvação do próprio Fluminense em 2013, quando a Portuguesa perdeu 4 pontos por escalar irregularmente o atleta Heverton. Pela regra anterior, só perderia o ponto do empate e escaparia.
** como ironia e cara de pau poucas são bobagens, um dos autores do regulamento da Copa JH, criada para driblar decisão que reconhecia a boa fé do SPFC, foi justamente o ex-presidente tricolor Bastos Neto. Uma vergonha.
Equívoco seu, em 2013 o clube salvo foi o Flamengo.
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