Créditos da imagem: Reprodução AFA
Memória esportiva – o 1 a 0 com cara de 7 a 1
Competições diferentes. Históricos diferentes (O Brasil ainda era tri e a Argentina era a então bicampeã mundial). Mas a partida desta terça-feira tem, na perspectiva, nuances que lembram um dos maiores fracassos da seleção brasileira. Em certo aspecto, mais ridículo que o vexame de 2014. A despeito do placar desproporcional, a Alemanha era superior. Já na Copa de 1990, no confronto das oitavas-de-final, a seleção estava muito acima da Argentina. Houvesse VAR naquele tempo, sequer teria ocorrido a disputa. Os argentinos teriam caído no segundo jogo da primeira fase, com pênalti para a URSS e Maradona expulso. Maradona, que tinha uma “laranja” no tornozelo, segundo relatos. Tudo para ser um passeio. Solo que no…
Embora com o mesmo técnico e boa parte da base vencedora no México, a estreia argentina veio a mostrar o que a preparação já indicava: o time estava um horror. Tirando seu camisa 10, campeão italiano pelo Napoli, nenhum dos titulares vinha bem. A começar pelo goleiro, Pumpido. Foi um “pollo” antológico que deu a Camarões sua primeira vitória em Copas. No jogo seguinte, o arqueiro fraturou a perna e, em seu lugar, entrou o aloprado Sergio Goycochea. Com muita sorte e a cegueira do árbitro, venceram e garantiram um constrangido terceiro lugar empatando com a Romênia. Por força das regras de cruzamentos, o adversário seria o Brasil. De um lado, o primeiro colocado de sua chave, com três vitórias. De outro, um catado à espera de um milagre – com alguma ajuda das menos lícitas, como veremos mais adiante. E Maradona se arrastando.
Por outro lado, que não se pense que o Brasil era bonança pura. Até deveria ser. Além do título da Copa América de 1989, a equipe de Lazaroni venceu amistosos bem disputados contra as favoritas Itália (dona da casa) e Holanda. O polêmico esquema com líbero tinha vingado e qualidade individual não era problema, desde o gol (Taffarel) até o camisa 9 (Careca, parceiro de Maradona no Napoli). Mas, já naquele tempo, a combinação de grupo fechado e semestre antes da Copa era um jardim do diabo. Uma série de polêmicas rachava o ambiente. Teve briga por premiação. Teve o reserva Romário forçando a ida mesmo mal-recuperado de fratura. Teve a mudança no meio-campo, com Alemão (também do Napoli) ganhando a vaga de Silas. Teve uma derrota esdrúxula em jogo-treino com a seleção da Umbria. E teve resultados magros na primeira fase – especialmente o 1 a 0 contra a Costa Rica.
Neste contexto, pegar uma Argentina desacreditada não era o jogo eliminatório dos sonhos. Havia um temor de que Maradona, contundido e nunca tendo vencido nossa seleção (longe disso), resolvesse a partida num lance. Ainda assim, qualquer prognóstico lógico, mesmo considerando a máxima de Jardel (clássico é clássico e vice-versa), indicava uma vitória tranquila dos favoritos. Para decidir sozinho, Maradona teria que passar por uma defesa fortíssima. Além de Taffarel, o trio de zaga tinha à frente o volante Dunga e a ajuda de Alemão. Para ajudar o pibe, havia apenas o então inexpressivo ponta Caniggia. O Brasil tinha Müller ao lado de Careca, além da dupla Bebeto e Romário (ambos fora de forma) e o irritado Renato Gaúcho (que reclamou publicamente da reserva) no banco. Mesmo que a Argentina fizesse um, dificilmente deixaria de tomar outros.
O primeiro tempo não mostrou panorama técnico e tático diferente do sugerido. O Brasil criava chances seguidas. Além de verem a equipe perdida, os argentinos se desesperavam com cada intervenção confusa de Goycochea. Faltaram detalhes não tão pequenos: os gols. Müller estava numa tarde das mais infelizes da carreira. Na volta do intervalo, Branco começou a dar estranhos sinais de mal-estar. Mais tarde se saberia que tomou um gole da água “especial” que o massagista de Billardo preparava aos adversários. O domínio brasileiro continuou, mas tropeçando no nervosismo. Paralisado, Lazaroni não mexia nem para trocar o ala-zumbi. Outro jogador de ataque para pressionar a retranca argentina, nem pensar. O milagre de Santa Maria de Los Buenos Aires começava a se desenhar. Questão de a bola cair no pé nada santo de Maradona. E da busca de um culpado que dura até hoje.
Primeiro foi o drible no colega de clube Alemão. Depois Dunga, que não fez a falta. Ainda assim, havia Diego e Cannigia contra três defensores. Seria preciso outro drible ou um posicionamento errado do trio de zaga. Ricardo Rocha se encarregou disso. Em vez de seguir em Caniggia, resolveu acudir os companheiros. Maradona, que dificilmente conseguiria ir mais adiante, agradeceu e deu o gol de presente ao amigo. Foi sua única jogada memorável na competição (incluindo os jogos seguintes, com a Argentina sendo vice-campeã aos trancos e barrancos). Suficiente, contudo, para apagar todos os reveses anteriores contra o Brasil, incluindo a derrota na Copa América e o cartão vermelho de 1982. A seleção, no desespero, ainda perderia outro gol feito com Müller. Renato entrara no finalzinho, para depois dizer que Lazaroni devia tê-lo confundido com Jesus Cristo. Harmonia é tudo.
O pós-desastre imediato não foi nada generoso com o Brasil. O clima de histeria foi tal que, por ser fisicamente parecido com Franz Beckenbauer (técnico da campeã Alemanha Ocidental*), Paulo Roberto Falcão foi escolhido para suceder Lazaroni, eternamente desprezado – não sem motivo. Confiante, mesmo sem Maradona (afundado nas drogas), a Argentina venceu duas Copas América seguidas e até Goycochea virou intocável – na hora da disputa de pênaltis, compensava as deficiências. A prazo menos curto, contudo, a base brasileira de 1990 foi campeã mundial em 1994 e a Argentina nunca se recuperou totalmente do “monumentazo” contra a Colômbia (5 a 0 em 1993). Sem contar o óbvio: o Brasil ganhou mais duas Copas e a Argentina não conquista nada desde 1993. Não é por menos que o “decime lo que se siente” é uma das últimas provocações que restaram.
E hoje, como vai ser? O cenário é parecido. Quase eliminada, a Argentina chegou às semifinais com o básico do básico. Messi sequer foi relevante. Jogando em casa, o Brasil é favorito até sem Neymar. Há pontos vulneráveis a explorar na defesa Argentina – embora Armani seja beeeem melhor que Goycochea. Ainda que Messi desequilibre num ou dois lances, a seleção tem condições de produzir mais que duas jogadas. O perigo é o que intitula a coluna: a memória do passado (mesmo para quem nem era nascido) pode dar as caras no presente. Basta que as malfadadas condições se repitam em campo. Cairá o raio duas vezes na mesma cabeça? Ou eletrocutados serão os outros? Lembraremos daqui a mais trinta anos.
*a reunificação das Alemanhas só aconteceu depois